por Laura Gonçalves
Vários anos atrás, uma amiga, dessas pessoas pra quem escrever é igual a dormir e comer, me comunicou que estava deletando suas redes sociais. E vamo lá, suas redes sociais é mentira, porque na época era só o Facebook mesmo. Ela me disse que achava assustadora a forma como as pessoas gastavam o mundo em palavras e mais palavras sem cabimento. Eu, que sou um pouco mais banal que esta minha amiga, me gastei e gastei o mundo trocentas vezes em palavras sem cabimento. A escrita e as redes sociais sempre foram, pra mim, um instrumento para que eu fosse capaz de digerir o mundo. E o mundo que eu tento digerir é um mundo atravessado pelas mais absurdas violências. Hoje, ao tentar processar 500 mil mortes, eu lembrei dessa conversa. Talvez a Folha de S. Paulo tenha acertado em sua capa, em que a ausência de palavras chama nossa atenção. Também estão certos os tweets que eu vi, espalhados por aí, dizendo que fomos roubados até em nossa capacidade de resguardar um minuto de silêncio por nossos mortos e mortas. Passam os dias, e nos vemos presas a uma pergunta que não é nova, mas que se torna cada dia mais insuportável nesse fim de mundo que vivemos -- em nome do que, exatamente, estamos vivendo? Minha saída é escolher palavras para dar nome às minhas experiências e aos meus sentimentos. Mas não se enganem. Esses nomes não são palavras gastas em positivação de uma moral antiga, cuja versão mais recente atesta que meu valor é proporcional a minha capacidade de engajamento virtual. Hoje, em que mais de 500 mil pessoas foram mortas em nome da autoridade de Jair Bolsonaro e seus seguidores, e ontem, também, quando descobri que em oito dias, mais de 500 pessoas haviam sido executadas em nome da autoridade de outros homens, e amanhã, também, quando acordarei com notícias que atestam a execução de meninos em nome da autoridade desses mesmos homens; todos os dias, escolho palavras que consolidam, em mim, compromisso com a moral cotidiana de anônimas que, no silêncio de nossas ruínas, estão vivendo, criando mundos que vão muito além destas hierarquias fictícias que só servem para cultivar em nós mecanismos de auto destruição. Procuro, compulsivamente, o olhar destas pessoas e é só nestes olhos que me reconheço.
Entre palavras e silêncios, eu me mantenho íntegra (contra todas as evidências) porque quando olho para os lados, me vejo entre pessoas que, sem vocação nenhuma para mártires, vivem, dão risada, amam e gozam, ao mesmo tempo em que carregam nos ombros o peso do mundo. Para as outras pessoas, estas que acreditam que são capazes de caminhar entre nossas ruínas ilesas, eu não tenho tempo, não tenho paciência, guardo apenas pena, que cada dia mais se converte em indiferença. Ainda, para aquelas outras pessoas, oportunistas, encantadas por seus feitiços de invulnerabilidade, guardo raiva, desprezo e ressentimento. Não, nós não esquecemos toda a dor e todo o sofrimento que testemunhamos. Também o perdão não está em negociação. Conhecemos muito bem a violência que nos criou, carregamos ela conosco, eles a depositaram em nossos corpos. Nossa leveza não se constrói na paz, ela existe apesar da guerra. Não nos confundam com idiotas e covardes para quem a paz e a felicidade são uma questão de “mindset”. Estes, como diz Drummond, morrerão de medo, reféns de si mesmos, e sobre seus túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Agora, sobre os nossos túmulos, sobre os nossos corpos, sobre as nossas vidas, sobre as nossas mortes, sobre nossas existências e sobre nossas ausências, nascem coisas para as quais eles não têm palavras. Nós, como minha amiga, escolhemos meticulosamente nossas palavras e sabemos muito bem o que queremos dizer quando exigimos justiça. Eu e outras tantas pessoas sabemos que para homenagear nossos mortos e mortas, cabe apenas uma palavra -- justiça.
Nós fomos esperados sobre esta Terra. Nossos mortos são nós.
Nossos mortos são nós...
Laura, sim, são nós. Que se atam e desatam, e nos desacatam. Nós que entre nós habitam e nos habitam. Nós...